Cadernos de Saúde Pública
versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.37 no.1 Rio de Janeiro 2021 Epub 05-Fev-2021
https://doi.org/10.1590/0102-311×00333220
RESENHA
O corpo recusado e atual de Luiz Cecilio
Luciano Bezerra Gomes1
http://orcid.org/0000-0002-1957-0842
1 Departamento de Promoção da Saúde, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil.O CORPO RECUSADO. Cecilio, L. São Paulo: Hucitec Editora, 2020. 288p. ISBN: 978-65-860039-32-0.
Luiz Carlos de Oliveira Cecilio tem uma contribuição inestimável para o campo da saúde coletiva. Para ficarmos apenas nas suas publicações, são marcantes os livros publicados ao longo das últimas décadas, desde o instigante Inventando a Mudança na Saúde1 até um dos recentes, em que problematiza o papel dos usuários na produção das redes de cuidado 2. Ou mesmo em artigos importantes, tais como: ao questionar o modelo piramidal e propondo o círculo como imagem para estruturação dos sistemas de saúde 3; ao propor considerarmos o conflito como matéria-prima da gestão em saúde 4; ao recorrer a Tolstói para discutir a gestão do cuidado 5; ao formular o conceito de trabalhador moral para pensar a relação entre trabalho e gestão 6, entre muitos outros.
Mas foi tentando me distanciar dessa monumental obra que procurei ler seu mais recente livro, intitulado O Corpo Recusado7, obra em que sua vida (re)vista por ele no próprio espelho é que deu o mote da escrita. Era Luiz de frente para Cecilio (ou vice-versa), deixando generosamente uma porta aberta para que pudéssemos assisti-lo nesse desnudar-se.
A riqueza de universos que me eram apresentados a partir das descrições e análises do Cecilio me levou a ocupar um tempo nas primeiras incursões no livro tentando decifrar se tratava-se, por exemplo, de uma obra autoetnográfica 8 ou mesmo de uma cartografia 9. Porém, percebi que isso era uma tentativa mais do que infrutífera, até desrespeitosa para com a coragem expressa pelo autor. Em parte, por não ser ocasional um autor ilustrado em metodologias qualitativas de pesquisa ter, deliberadamente, resolvido escrever um material quase confessional sem recorrer ao debate acadêmico, fazendo questão de livrar-se (até onde conseguiu) dele. Mas também porque essa minha perspectiva me levaria a me propor refletir sobre elementos secundários, como o quanto seria uma cartografia se a maneira como Cecilio opera o conceito de desejo é tão distinta de como autores fundantes desta perspectiva o faziam 10,11. Enfim, reconhecida essa entrada ruim na leitura, acabei por me lançar no texto, sem tais intenções iniciais, e me permiti fruir a leitura.
Em meio ao processo catártico que o texto operou no próprio autor, o livro foi sendo alinhavado em torno de três eixos, não lineares. O primeiro deles abordando o modo como Cecilio lidou com o reconhecimento (para si e para outrem) de sua condição de gay, e como a construção, ocupação, saída e persistência no “armário” foram aspectos relevantes neste processo. Um segundo eixo trata da condição de soropositivo para HIV há três décadas, desde uma época em que isto era sinônimo de morte rápida, dolorosa e trágica, e suas lutas para resistir na existência. E, por fim, o envelhecimento e seus efeitos sobrepostos e sinérgicos com os eixos anteriores.
Muitas imagens fortes, divertidas, autoirônicas, dramáticas entre outros adjetivos expressivos poderiam ser recolhidas desse material. Uma expressiva do livro foi a afirmação do autor de que teria descoberto “que havia sexo entre homens no exato momento em que conheci a homofobia” (p. 211). Ou a maneira como Luiz Cecilio produz diferentes sentidos para as adjetivações/conceituações desse corpo que, de recusado, passar por desejado, medicalizado, supliciado, bichado… permitindo recolocar mesmo a pergunta espinosista sobre “o que pode um corpo?”. Ainda, a própria singularidade – registrada pelo antropólogo Richard Parker, presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, na atividade pública de lançamento do livro – da inovação dessa obra em abrir elementos potentes para discutir o envelhecer dos gays soropositivos, em suas consequências na vida sexual, afetiva, social, entre outras dimensões.
Enfim, acredito ter evidenciado algumas das múltiplas possibilidades de se explorar esse livro. Dentre elas, é impossível não indicar um aspecto que, se não foi deliberadamente escolhido pelo Luiz, pelo menos creio que, inconscientemente, operou nele: o detalhe de iniciar o prólogo do livro com uma citação do Peter Pal Pelbart, e a última parte do livro ser intitulada “esgotamento”. No fragmento em que Cecilio inicia seu texto, Pelbart define um livro como uma experiência radical, que embora parta de uma experiência pessoal não é a exposição ou reprodução da experiência vivida, e sim a própria transformação de si. E Cecilio, ao concluir falando do esgotamento como um modo de existência que o tem ocupado ao final da escrita, acaba remetendo o leitor a outra obra do próprio Pelbart.
Em O Avesso do Niilismo: Cartografias do Esgotamento12, Pelbart explora autores e questões fundamentais para o pensamento contemporâneo tentando, entre outras intenções, delinear o esgotamento como um conceito capaz de se contrapor ao niilismo. O filósofo inicia sua obra por uma seção em que define o esgotamento não como um cansaço ou renúncia do corpo e da mente, mas como uma condição que nos instala e que permite a constituição de mundos outros, a criação de possíveis. Colocando o esgotamento como categoria (bio-micro) política, Pelbart nos convida, tal qual intitula no texto que encerra essa obra, a nos engajarmos “por uma arte de instaurar modos de existência”.
Creio que, com o seu O Corpo Recusado, desnudando seus afetos para, ao fim, reconhecer sua situação de esgotamento, Luiz Cecilio dá mais uma contribuição incontornável que, mesmo sem intenção, o coloca novamente no centro não do que eventualmente esteja na agenda atual da saúde coletiva, mas do que, com certeza, deveria estar.
REFERÊNCIAS
1. Cecilio L CO, organizador. Inventando a mudança na saúde. São Paulo: Hucitec Editora; 1994. [ Links ]
2. Cecilio L CO, Carapinheiro G, Andreazza R, organizadores. Os mapas do cuidado: o agir leigo na saúde. São Paulo: Hucitec Editora/Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo; 2014. [ Links ]
3. Cecilio L CO. Modelos tecno-assistenciais em saúde: da pirâmide ao círculo, uma possibilidade a ser explorada. Cad Saúde Pública 1997; 13:469-78. [ Links ]
4. Cecilio L CO. É possível trabalhar o conflito como matéria-prima da gestão em saúde? Cad Saúde Pública 2005; 21:508-16. [ Links ]
5. Cecilio L CO. A morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói: elementos para se pensar as múltiplas dimensões da gestão do cuidado. Interface (Botucatu) 2009; 13 Suppl 1:545-55. [ Links ]
6. Cecilio L CO. O “trabalhador moral” na saúde: reflexões sobre um conceito. Interface (Botucatu) 2007; 11:345-51. [ Links ]
7. Cecilio L . O corpo recusado. São Paulo: Hucitec Editora; 2020. [ Links ]
8. Raimondi GA, Moreira C, Barros NF. O corpo negado pela sua “extrema subjetividade”: expressões da colonialidade do saber na ética em pesquisa. Interface (Botucatu) 2019; 23:e180434. [ Links ]
9. Rolnik S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina/Editora da UFRGS; 2006. [ Links ]
10. Deleuze G, Guattari F. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34; 2010. [ Links ]
11. Guattari F, Rolnik S. Micropolítica: cartografias do desejo. 7ª Ed. São Paulo: Editora Vozes; 2005. [ Links ]
12. Pelbart PP. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. 2ª Ed. São Paulo: n-1 Edições; 2016. [ Links ]
Recebido: 28 de Novembro de 2020; Aceito: 11 de Dezembro de 2020
lucianobgomes@gmail.comInformação adicional
ORCID: Luciano Bezerra Gomes (0000-0002-1957-0842).
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