Joaquim Nabuco na República
Por Lucas van Hombeeck (PPGSA/UFRJ)
Joaquim Nabuco na República é o sétimo volume da coleção Pensamento Político-Social, da editora Hucitec, idealizada por Gildo Marçal Brandão (USP) como desdobramento do projeto Linhagens do Pensamento Político e Social Brasileiro, coordenado por ele e Elide Rugai Bastos entre 2008 e 2012. A coleção publicou dezesseis livros entre 2010 e 2016 – alguns em coedição com entidades como CLACSO, FLACSO, FAPESP e ANPOCS – sob a direção de Elide Rugai, André Botelho e Gabriela Nunes Ferreira. Mais recentemente, em 2022, foi retomada com nova identidade visual e a adição de Maurício Hoelz aos seus diretores.
Ao longo dos anos, a coleção Pensamento Político-Social publicou títulos sobre temas tão diversos quanto direitos humanos, estética sociológica, médicos intérpretes do Brasil, pensamento conservador e marxismo latino-americano, além de monografias e reuniões de artigos sobre autorias clássicas – umas menos, outras mais estudadas – do pensamento político e social brasileiro. Joaquim Nabuco na República, organizado por Angela Alonso e Kenneth David Jackson, é um desses livros, que reúne contribuições de um conjunto de especialistas na obra do ensaísta, historiador e diplomata pernambucano se detendo, desde o título, sobre uma fase tardia de sua vida e obra.
Como os organizadores contam na apresentação do volume, a coletânea é produto de dois seminários e um dossiê. O primeiro foi um encontro em 2008 em Yale, marcando o centenário das conferências de Nabuco em universidades norte-americanas[1], entre as quais as duas primeiras – sobre Camões e o sentimento de nacionalidade na história do Brasil – foram dirigidas aos alunos daquela universidade. O segundo aconteceu na Universidade de São Paulo, também em 2008, com o título “Nabuco e a República”, o mesmo escolhido para o dossiê da Revista USP que reúne os trabalhos apresentados e que serve de base ao livro.
Comparada com sua fase heroica, geralmente associada à liderança da campanha abolicionista e à publicação de seus escritos mais radicais, como O Abolicionismo (1883), a vida e obra tardias de Nabuco recebem menos atenção de sua fortuna crítica – à exceção, talvez, de Um Estadista do Império (1898-1899) e de Minha formação (1900). Neste volume, esses dois títulos ganham a análise merecida, com destaque para o já clássico ensaio “O linho e a seda. Notas sobre o catolicismo e a tradição inglesa em Minha formação, de Joaquim Nabuco”, de Ricardo Benzaquen. Mas, além disso, um dos pontos fortes do livro é sua interpretação da obra de Nabuco por meio de textos que mobilizam uma empiria um pouco menos visitada – como a troca de cartas entre Machado de Assis e o diplomata[2], em artigo de Kenneth David Jackson; ou na leitura “contextual e intencionalista” (Alonso, 2012: 73) de Balmaceda (1895) e A intervenção estrangeira durante a revolta (1896) feita por Angela Alonso em “A década monarquista de Joaquim Nabuco”.
Os textos de Jackson e Alonso, aliás, abrem respectivamente as duas primeiras seções de Joaquim Nabuco na República, dividido em três partes: “O ensaísta”, “O historiador” e “O diplomata”. O livro também traz em torno de quinze páginas de iconografia, contendo principalmente retratos e capas de livros do período que vai das vésperas do golpe republicano até meses antes da morte do autor, em 1910. Com a epígrafe, tirada de Pensamentos soltos (1906), segundo a qual “A dificuldade não está em descobrir, no escritor, esse ranço coletivo, nacional ou histórico, senão em formular a síntese de sua individualidade, o que ele foi dentro de sua época”, o projeto parece querer compor uma figura singular a partir dos modos de engajamento de Nabuco com seu tempo, em pelo menos três esferas de ação distintas que, no entanto, se interpenetram.
Assim, o Nabuco “ensaísta” é lido por suas cartas, memórias e escritos políticos, estes últimos explorados em sua capacidade de interpelação contemporânea, num paralelo histórico diacrônico escrito por Marco Aurélio Nogueira. O Nabuco “historiador” está nos textos de intervenção em torno da reação monárquica à República, sua escrita em primeira pessoa integrando a história brasileira com outras experiências latino-americanas, como as do Paraguai e Chile, e sua elaboração estética “clássica” da figura de seu pai como modelo legado ao futuro, como no texto de Ricardo Salles. E o Nabuco “diplomata” é analisado em dois excursos sobre sua interpretação do sistema mundial e continental e sobre as escolhas políticas que lhe coube fazer, talvez com pouca margem de manobra, junto ao serviço diplomático dirigido por seu interlocutor (e às vezes rival) Barão do Rio Branco, o Paranhos.
Ou seja, talvez ao contrário do que propõe a epígrafe do livro, não parece haver nele propriamente uma síntese do personagem – pelo menos não no sentido de uma reconciliação unitária e superior de contradições. As muitas abordagens reunidas, do ponto de vista metodológico e interpretativo, combinam não só perspectivas, como gerações diferentes de Nabucólogos em movimento ao redor de uma série de imagens concentradas num período de inflexão da história política do Brasil e dessa vida e escrita. No carrossel de figurações do sujeito, a nota que fica é a de que diferentes faturas textuais legíveis na empiria codificam aspectos distintos de uma democracia (ou de um estilo de vida democrático) difícil numa República que já conviveu (e convive) muito facilmente com o autoritarismo. Seja por conta de um conservadorismo resistente que esquematiza, pela cosmologia católica, o que o romantismo do século XIX teria a oferecer de emancipador; seja pela eficiência com que a ordem neutraliza o protesto dos seus agentes sociais emergentes, individuais ou coletivos.
Escrevi que, ao contrário do que aparece na epígrafe tirada dos Pensamentos soltos (1906), o livro não produz uma síntese. Não é bem verdade. O movimento de passagem pela vasta e diversa empiria com que os intérpretes trabalham produz imagens do personagem que talvez seja justo interrogar num sentido mais geral, quer dizer, qual é o Nabuco que emerge de Joaquim Nabuco na República? A diferenciação interna do livro é análoga à que encontramos dentro da coleção Pensamento Político-Social, como apontei acima. Mas, num caso como no outro, há algo que fica: na nota dos diretores para a quarta capa dos livros, se lê que “as relações, as instituições e os processos políticos não se realizam desacompanhados das interpretações que recebem. O mesmo vale para os seus portadores sociais e a sociedade como um todo”. Ou, mais sinteticamente, como na quarta capa das edições da coleção desde 2022, “ações, processos e instituições não existem sem as interpretações que as acompanham. Estão em relações reflexivas”.
Joaquim Nabuco na República nos ajuda a pensar quem foi e o que significa a memória de Joaquim Nabuco, sua vida e obra, num momento em que a sociologia política é cada vez mais importante para a interpretação das mudanças institucionais em perspectiva com o processo histórico e social. As crises da democracia pelas quais passamos são crises subjetivas, não apenas porque nos afetam individualmente, mas porque são crises nas dinâmicas de produção dos sujeitos da política. O livro nos dá elementos, então, para pensar as duas pontas do problema: tanto pela dinâmica dos afetos e a relação entre corpo e escrita legível em cartas, memórias e ensaios, quanto para avaliar as mudanças nas condições de possibilidade de emersão de atores democráticos na cena pública brasileira.
Se, como escreveu outro autor de pensamentos soltos, Blaise Pascal, a memória é necessária a todas as operações da razão, então o que Joaquim Nabuco na República nos oferece é um conjunto de entradas para a compreensão de uma tradição que, ao mesmo tempo, condiciona e capacita as formas de ação histórica pela liberdade em um país em que o significado desse termo parece ser um lamentável mal-entendido, na expressão de Sérgio Buarque de Holanda. Nosso contexto em 2025 é muito diferente daquele que motivou a publicação do volume de Alonso & Jackson em 2012. Mas uma coisa é certa: que aqueles e aquelas implicados com a democracia herdam de Nabuco a tarefa de não apenas abolir a escravidão, mas destruir sua obra; de continuar a fazer, contra o complexo senhor-escravo, contra o fracasso de Nabuco – e, às vezes, até mesmo contra a República – a dignidade e a cidadania.
Notas
[1] Para um conjunto de ensaios comemorativos do centenário das conferências, escritos por especialistas brasileiros e estrangeiros e editado em dois volumes, ver Jackson (2010) e Albuquerque (2010).
[2] Para outra interpretação notável dessa relação de escrita de vida dialógica, com acento na desigualdade das formas de racialização de que/a que Machado e Nabuco foram sujeitos, conferir Santiago (2016).
Referências
ALBUQUERQUE, Severino J. (org.) (2010). Conferências sobre Joaquim Nabuco: Joaquim Nabuco e Wisconsin. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi.
JACKSON, Kenneth David. (org.). (2010). Conferências sobre Joaquim Nabuco: Joaquim Nabuco em Yale. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi.
SANTIAGO, Silviano. (2016). Manassés e Efraim. In: Machado. São Paulo: Companhia das Letras.