Quando eu era menino e cheguei à escola, a professora pediu que lêssemos em voz alta um texto que dizia: “Pedro estava sentado no fundo da sala”. Pensei: não, aqui não tem nenhum Pedro! Como isso é possível? Para mim, era simples: ou ele estava em um lugar ou em outro. E se ele estivesse aqui, deveria estar presente. Então, eu disse: não existe Pedro. Escrever é algo mágico, realmente mágico.
Continuei lendo: “Pedro se levantou” — Pedro se levantou? Onde está? Não tem ninguém de pé, muito menos o Pedro!— “e falou com a professora que tinha um problema e precisava ir para casa. Então, a professora autorizou sua saída”. Depois veio outra frase que estava escrita ali e eu mal pude acreditar!: “Estava chuviscando, ele abriu o guarda chuva e saiu”. Comentei: esse lugar não existe; não há chuvisco; nada disso! Então quer dizer que é possível fazer chover apenas escrevendo? Como isso pode ser racional? Como isso faz parte da cultura humana? Aquilo foi um verdadeiro sofrimento intelectual.
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Tom Zé é o nosso convidado; mas, na verdade, ele é quem nos convida, uma vez que, a partir de sua obra e de seus depoimentos, nos incita a inventar maneiras inusitadas de pensar a música e de perceber o mundo. Para explorar as provocações poéticas do artista, este livro foi organizado como um encontro dividido em duas partes: um texto que apresenta uma análise estética da produção de Tom Zé, e a segunda, uma entrevista com o artista, na qual são abordados momentos de sua vida em relação à sua trajetória artística. Duas perspectivas distintas sobre a criação de Tom Zé, que, além de serem complementares, certamente estabelecem um diálogo intenso e prazeroso entre si.
Na primeira parte, intitulada “Tom Zé e a filosofia brasileira: ou passa a aprender com a rua ou não vai sobreviver”, Ivo Mineiro Teixeira sugere uma reflexão que gira em torno de uma questão central: “o que seria uma filosofia brasileira?” Ivo se dedica a entender uma filosofia que foque na realidade do país, tratando de temas relevantes para o povo e definindo as condições necessárias para a sua inserção e transformação. Nesse cenário, ao empregar músicas, imagens, lugares e pessoas como elementos para examinar as culturas populares brasileiras ele destaca a Tropicália, especialmente pelas contribuições de Tom Zé, como um dos movimentos estéticos mais importantes da história do Brasil. Embora já tenha sido amplamente analisado sob o aspecto artístico, esse movimento ainda não ganhou a atenção que merece em sua dimensão filosófica. Teixeira aponta que Tom Zé trouxe uma nova visão para interpretar o movimento tropicalista por meio do álbum Tropicália lixo lógico, lançado em 2012.
Com esta obra, o artista baiano parece não apenas traçar uma genealogia da Tropicália, mas também apresentar um conjunto de referências filosóficas, culturais e sociais essenciais para o seu surgimento, caracterizando-o como um movimento que possui também uma vertente filosófica e sistematiza as particularidades de uma realidade nacional específica com um “sotaque” baiano.
Para realizar esse projeto de investigação artística, Tom Zé não descansa; frequenta diariamente seu estúdio, espaço em que explora suas formulações estéticas. Ele busca desenvolver uma linguagem musical além do convencional, explorando novas sonoridades e instrumentos que ele mesmo inventa, como o enceroscópio e o buzinório. Mas qual é a razão que o leva a inventar novos instrumentos? Por que os já disponíveis não conseguem transmitir aquilo que ele deseja expressar em suas músicas? Talvez isso se deva ao entendimento do artista de que sua função não é oferecer explicações ou arranjar soluções, mas sim provocar desejos.
Adaptado da Apresentação, escrita por Giuliana Simões & Flávio Desgranges
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SUMÁRIO
Apresentação – Giuliana Simões & Flávio Desgranges
Tom Zé e a Filosofia Brasileira: Ou passa a aprender com a rua ou não vai sobreviver
Ivo Mineiro Teixeira
INTRODUÇÃO
Capítulo 1 – mas o que salva a humanidade / é que não há quem cure a curiosidade
Capítulo 2 – Com quantos quilos de medo se faz uma tradição?
Capítulo 3 – tom zé, te explicando para te confundir
Capítulo 4 – Mas voltemos aos anos 60
Capítulo 5 – Apocalipsom A
Capítulo 6 – Tropicalea Jacta Est
Capítulo 7 – Marcha-enredo da creche tropical
Capítulo 8 – Tropicália Lixo Lógico
Capítulo 9 – considerações finais
Capítulo 10 – referências
Capítulo 11 – O osso da canção: conversas com Tom Zé
Capítulo 12 – Essa língua não se fala lá em casa
Capítulo 13 – Se houver fogo, eu entro como uma salamandra
Capítulo 14 – A novela da tonalidade
Capítulo 15 – Obstinado: a descoberta do Ostinato
Capítulo 16 – O que eles mais gostaram foi da afinação da orquestra
Capítulo 17 – Prazer. Só
Capítulo 18 – Sem emprego, sem tropicalismo, sem nada
Capítulo 19 – Os pios e os arrepios
Capítulo 20 – É um negócio de espanto, até de uma certa alegria, por eu ter outro jeito de compreender aquela família
Capítulo 21 – Os grotões de Irará
Capítulo 22 – Outra noção de tempo
Capítulo 23 – Contratempo universal
Capítulo 24 –Lixo lógico
Capítulo 25 – Tai chi em Montreux
Capítulo 26 – Um orangotango falando inglês clássico numa peça de Shakespeare
Capítulo 27 – Inacabamento
Capítulo 28 – A criança entortada
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Sobre a autora e autores
Flávio Desgranges tem desfrutado ao longo dos anos de encontros e diálogos prazerosos com Tom Zé. Em meio a tanta admiração, surgiu a ideia de organizar, gravar e publicar essas conversas, proposta que Tom Zé gentilmente aceitou. Atualmente, é professor do Departamento de Artes Cênicas da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e atua como professor colaborador na Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (USP).
Giuliana Simões, desde a sua infância, teve a oportunidade de conviver com Tom Zé, que, por uma grande sorte e provavelmente devido a um
alinhamento especial dos astros, é seu tio. Ao observar o trabalho de Tom Zé, ela percebeu que a arte vibra e oscila de forma semelhante à existência; com base nessa perspectiva, tem se dedicado a investigar as tensões sempre mutáveis entre arte e vida. Atualmente, é professora do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Escola Superior de Artes Célia Helena (ESCH). Possui doutorado em Letras e em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP).
Ivo Mineiro Teixeira é graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e, atualmente, bacharelando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Apaixonado pelo Brasil e por esse indizível que faz a brasilidade, estudou como o tropicalismo e seu expoente filosófico Tom Zé moldaram política e filosoficamente nossa sociedade.