Em 1854, um surto de cólera numa parte de Londres causou muitas mortes em curto período e pânico. O médico John Snow constatou que a doença era veiculada através do abastecimento inadequado de água. O modo como ele comprovou sua teoria está descrito nesse livro, um clássico, e fonte permanente de inspiração para estudantes e profissionais de saúde na compreensão do processo saúde-doença.
SUMÁRIO
Nota editorial
Apresentação da segunda edição brasileira, Sérgio Koifman
Introdução, Wade Hampton Frost
John Snow, um representante da ciência e da arte médica na era vitoriana, B. W. Richardson
SOBRE A MANEIRA DE TRANSMISSÃO DO CÓLERA
Prefácio da segunda edição inglesa
Conteúdo
Apêndice
APÊNDICES DE W. H. FROST
I O cólera e o abastecimento de água: observações finais
II Os principais escritos de John Snow
APRESENTAÇAO DA SEGUNDA EDIÇÃO BRASILEIRA
SÉRGIO KOIFMAN
(Pesquisador adjunto, Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Osvaldo Cruz, Ministério da Saúde, Rio de Janeiro.)
UMA POSSÍVEL INDAGAÇÃO QUE O LEITOR DESTE LIVRO FARÁ RESIDE EM SABER qual a importância de republicar-se um documento escrito há quase cento e cinqüenta anos. Certamente muitos já terão ouvido a menção de que Sobre a Maneira de Transmissão do Cólera, escrito pelo médico John Snow em Londres em 1854, marca o início de uma nova era na análise das condições de saúde e doença dos grupos humanos, ou seja, da Epidemiologia e da aplicação de seu método.
Contudo, essa afirmação ainda não responde satisfatoriamente à pergunta inicial. Para lográ-la é preciso transportarmo-nos no tempo, e tentar nos situar na capital do Império Britânico em pleno século XIX – Londres, centro do vasto império onde o sol nunca se encontrava no poente, das Antilhas à Índia, da Guiana às várias colônias africanas, capital do comércio marítimo internacional, sede das grandes companhias bancárias e com intensa atividade industrial. Londres, capital do mundo, produzia e concentrava riquezas, mas tinha contrapartidas: as extenuantes jornadas de até vinte horas diárias de trabalho, mesmo para crianças, gestantes e velhos; e a concentração das moradias em bairros superpulosos e insalubres, onde os trabalhadores aglomeravam-se com suas famílias, em condições precárias de higiene e habitação; aí grassavam a tuberculose e elevados níveis de mortalidade infantil.
Neste centro febril de atividades industriais e comerciais, ocorriam freqüentes epidemias de cólera, grave doença com manifestações diarréicas intensas capazes de conduzir à morte em algumas horas. Originária geralmente da Ásia, a doença espalhou-se por todo o império, causando uma onda de mortes e criando sérios obstáculos ao pleno desenvolvimento da atividade comercial em seu conjunto. No plano das idéias, acreditava-se que tanto a causa do cólera como de outras doenças pestilenciais residia nos miasmas, o permanente odor fétido exalado dos populosos e malcheirosos bairros de trabalhadores.
É nesse cenário que Snow, consultor da Rainha Vitória, realiza meticuloso e paciente trabalho de análise das várias e diversificadas fontes de informação, procurando compreender como aquela doença espalhava-se nas diferentes localidades, desde o início dos sintomas até sua completa remissão: “Ele [o cólera] move-se ao longo das grandes trilhas de convivência humana, nunca mais rápido que o caminhar do povo, e, via de regra, mais lentamente. Ao se propagar a uma ilha ou continente ainda não atingidos, surge primeiramente num porto marítimo. Jamais ataca as tripulações de navios que vão de um país livre de cólera para outro onde ela está se desenvolvendo, até que eles tenham entrado num porto, ou que tenham tido contato com seu litoral. O seu avanço preciso de cidade para cidade nem sempre pode ser seguido; contudo, o cólera jamais apareceu, exceto onde tenha havido abundantes oportunidades para que fosse transmitido pelo convívio humano”.
Ao longo de seu exaustivo· trabalho de coleta e interpretação de dados, Snow vai gradativamente construindo um dos pontos de maior importância de seu método, que é o de buscar conhecer os fatos em seus aspectos mais íntimos para então formular uma possível explicação causal para eles. Esta preocupação o conduz, livre dos preconceitos comuns em seu tempo, a realizar inúmeras entrevistas com familiares, vizinhos e conhecidos dos casos de cólera, bem como com os médicos que os atenderam; a esmiuçar incansavelmente, num primeiro momento, o cotidiano dos pacientes e de seus parentes, para depois procurar conhecer em profundidade os hábitos de vida dos trabalhadores.
Nessa atividade inesgotável e já de posse de evidências de que o cólera seria transmitido por contaminação fecal, vai revelando fatos, como por exemplo as condições de vida dos trabalhadores nas minas de carvão e o costume de alimentar-se durante os velórios, como situações capazes de sustentar suas primeiras observações: “nossos carvoeiros descem às cinco horas da manhã a fim de estarem prontos para trabalhar às seis horas, e saem das minas entre uma e três e meia [ … ]. Todos os mineiros levam consigo uma provisão de comida, que consiste de bolo, além de, algumas vezes, carne [ … ]. A mina é uma enorme latrina e, logicamente, eles sempre fazem as refeições sem lavar as mãos”; ou também: ~os serviços realizados em torno do cadáver, tais como deitá-lo, se realizados por mulheres da classe trabalhadora, que aproveitam a situação para comer e beber, são amiúde seguidos de ataques de cólera; o mesmo ocorre com pessoas que simplesmente assistem ao funeral, não tendo nenhum contato com o cadáver, provavelmente em conseqüência do compartilhamento de alimento preparado ou tocado por pessoas que trabalham em torno do paciente colérico, que cuidam de sua roupa branca e pertences de cama”.
Contudo, é a ocorrência de um grave surto de cólera numa região delimitada de Londres, nas ruas próximas a Broad Street, Golden Square e adjacências, que fornece a Snow a oportunidade de demonstrar seu rigor na apuração da origem daquele surto epidêmico. Em meio ao pânico generalizado decorrente da alta mortalidade provocada pelo surto, com famílias inteiras fugindo de suas residências e estabelecimentos comerciais sendo fechados, Snow começa um levantamento detalhado do lugar de ocorrências dos óbitos, chegando à suspeita de que a contaminação era decorrente de uma bomba pública de água existente em Broad Street.
O levantamento junto ao serviço de registro de óbitos das mortes recentemente ocorridas pela doença, sua proximidade geográfica com a bomba de água de Broad Street, as entrevistas com os parentes dos casos sobre o consumo de água nela obtida, a existência de mortes em pessoas que, mesmo vivendo afastadas da bomba, consumiam habitualmente sua água, bem como a ausência de casos entre trabalhadores de uma cervejaria localizada próximo à bomba- cujo proprietário, embora fornecesse aguardente a esses trabalhadores, dispunha no entanto de poço próprio de abastecimento de água no interior da cervejaria-, deram a Snow um substancial conjunto de evidências a respeito da natureza daquele surto localizado. Mais do que isso, ele desenvolve e implementa nessa análise uma gama de conceitos que constituem ainda hoje as ferramentas cotidianas do epidemiologista, tais como a padronização de procedimentos, a distribuição temporal e espacial de casos, a noção de fonte de exposição, período de incubação e o método da diferença na explicação causal de uma associação, entre outros.
Deixa Snow assim, com sua obra, um riquíssimo legado quanto à construção de um objeto de estudo e, particularmente, quanto aos passos necessários para a formulação consistente de uma hipótese, num processo baseado essencialmente em evidências obtidas a partir de distintas fontes de informação e não a partir de concepções preexistentes. Dessa maneira, anteriormente às descobertas da microbiologia e respaldado por seu trabalho intelectual e de campo, ele afirmava: “não conheço um só exemplo em que ele [o cólera] se tenha proliferado por toda uma cidade ou bairro, por todas as classes de uma comunidade, e que a água potável não tenha sido o meio de transmissão”.
Sua criatividade será contudo definitivamente consagrada ao analisar comparativamente a ocorrência de casos de cólera entre 1849 e 1854 segundo suas fontes de abastecimento de água. Este era realizado através de companhias privadas com redes próprias de fornecimento, sendo que duas das principais, as companhias Southwark-Vauxhall e Lambeth, abasteciam seus reservatórios a partir das águas do Tâmisa, poluídas pela rede de esgotos, redistribuindo-as posteriormente pelos prédios da cidade. Devido à intensa concorrência entre ambas, suas redes de distribuição mesclavam-se num emaranhado de ramificações decorrente da escolha dos proprietários dos prédios, os quais pagavam pela sua ligação a uma das companhias de água, e não obedeciam portanto a uma lógica geográfica de distribuição.
Sérgio Koifman