Obra da Capa: “O Sertão é sem lugar”.
(Valdenir do Bonfim – artista plástico rio-pretense)
O livro O Desejo do Desejo do Outro: Politicanálise do Movimento Sanitário Brasileiro é uma obra filosófica, científica e literária. Zé Carlos ao realizar a “politicanálise” do Movimento Sanitário faz um recorrido histórico que reconhece esse Movimento como um acontecimento especial, produtor de novas epistemologias, várias, ainda que tenham uma única denominação: Saúde Coletiva.
Intelectuais, pensadores, cientistas que ele visita, cita, compara. Ele é muito generoso e respeitoso com todas essas personalidades históricas. Demonstra, trata-se de um Movimento que, além de teorias, buscou se aplicar ao mundo e à vida. Faz política, disputa influenciar a cultura, espera construir um novo poder, novos valores, instituições democráticas. Zé (Cacau) inova radicalmente a tradição analítica da Saúde Coletiva ao utilizar os quatro discursos da Jacques Lacan para fundamentar sua “politicanálise” do Movimento da Reforma.
Fica-nos o enigma: o que fez no passado, o que vem fazendo hoje e o que fará o Movimento Sanitário brasileiro diante de tanto sofrimento, de tanta iniquidade e injustiça? Politicanálise, senhoras e senhores. Leiam o livro do Cacau!
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Que tiro foi esse? Existe um SUS?
Diz Cacau: “O Movimento pela Reforma Sanitária Brasileira nasce com a palavra de ordem “Saúde e Democracia”. Talvez, eu inverteria a posição das palavras, mas não vem ao caso”. O autor se enganou. Vem ao caso, sim. O desejo deleuziano penetra este livro, dirigido aos SUS dos muitos pensadores e ativistas dos Movimentos Sanitários. Quantos SUS!!!
Os SUS em que a Democracia vem depois e os SUS em que a Saúde vem depois. Vem ao caso, sim. Ou aos tantos causos que Cacau inspira e conta, por sua vez, inspirado que é por Guimarães Rosa, Gramsci, João Cabral, Lacan, Freud e outros poetas e filósofos, tipo Badiou, que dizem que o impossível pode existir. Então, pode-se, sim, levar a democracia até as últimas consequências, esgarçá-la, ainda que, concordando com o Rosa (o Guimarães, mas pode-se estender também ao Noel), que “viver é muito perigoso”!
Não sei desenhar, mas sobreporia as duas palavras. Seriam uma só ou, no máximo, democracia e saúde, gêmeas xifópagas que dividem e desfrutam da dor e da delícia de serem um e dois corpos. Se acabamos de sair de quatro anos de necropolítica, isso não pode ser a razão para nos calarmos, engolirmos essa frágil democracia nacional, evitando criticar a permanência de políticos donos de currais de bala, da bíblia e do boi, de onde recolhem votos. Políticos sem políticas, que matam, criam igrejas e mandam seu gado doente passar.
É possível, sim, fazer força até esgarçar a democracia, mesmo em lugarejos, como São José do Rio Preto, em que, segundo esse autor Cacau, “o tempo é vagaroso” para se “fazer o SUS”. Nesses lugares em que o tempo é vagaroso e naqueles em que é rápido demais, currais hereditários podem dar lugar a territórios solidários, onde as gentes transitem criativamente. Afinal, “a gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar”. Aí, sim, a Saúde da Democracia excessiva poderá dispensar a “fluoxetinização” e a “ritalinização”, pois a “Mama África, mãe solteira que tem que fazer mamadeira todo dia além de trabalhar como empacotadeira nas Casas Bahia” vai ser menos gente humilde sem nem ter com quem contar.
Cacau convida, sem nos humilhar, a ler tantos autores… e indica, generosamente, como é bonita a vida dos livros e também a das artes: das artes plásticas, da Clínica Ampliada e da música brasileira. Como poucos, consegue escrevinhar um livro que, ao mesmo tempo, é uma história das pessoas sem nome do Brasil e de instituições que deveriam perder esse nome para se transformarem em ajuntamento de gente. É com essa simplicidade sofisticada que se podem entender todos esses SUS que roem os miolos de quem se dedica a pensar neles, mesmo recorrendo aos melhores psicanalistas dos últimos séculos.
Retomo o “Vem ao caso, sim”, porque desejei — certamente pelas derivas de Cacau — que a banguelice da baía de Guanabara, a cegueira do Ray Charles e Steve Wonder e o pouco enxergar de Hermeto, assim como as retinas cansadas de Drummond, não tenham sido ausência de boas políticas de um desses SUS — aquele que ainda pode ser fundamentalissimamente democrático — nas suas vidas.
O livro é intrigante o tempo todo e revela que erudição, simplicidade e um pouco de loucura podem conviver: “o estandarte do Sanatório Geral vai passar”.
— Maria Regina Cotrim Guimarães,
Médica Infectologista e doutora em História das Ciências
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Sobre o autor
José Carlos Lopes, taurino, nascido em 17 de maio de 1958 — Cacau para os rio-pretenses e Zé para os amigos de Campinas. Médico Sanitarista, doutor em Saúde Coletiva pela UNICAMP, professor concursado da FAMERP. Foi secretário de saúde de São José do Rio Preto/SP de 2001 a 2005, vereador pelo PT por dois mandatos. Pai da Gabriela, da Laura, da Júlia e da Joana. Aprendiz de violeiro e cozinheiro. Publicou, pela Hucitec, A Voz do Dono e o Dono da Voz: Trabalho, Saúde e Cidadania no cotidiano Fabril e Quasepoemas (Mandacaru). @cacaufogaocaseiro
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Sumário
Ao amigo Gastão: um clown shakespeariano
Carta ao amigo Zé, Emerson Elias Merhy
À guisa de elogio à criatividade
Um início: O começo diante de muios portos: Falta inventar o cais
No meio: O mal-estar da democracia e da saúde: entre a clínica do semblante e a clínica do impossível
Do meio: Territorializar, desterritorializar, reterritorializar – travessias em busca de pertencer sem-ser-um
Do fim: Além das cinzas de Gramsci: Destruir o mito e reinventar utopias no meio do mundo distópico
Sem fim: O povo que falta – uns são e não há outros, nenhum, nem um
Referências